Todos na escola, menos dois

Aleone Higidio
Foto: Larissa Lana

Chego para conversar com Cristiam, 8 anos, em um dos hotéis que alojam moradores dos subdistritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, e o encontro sentado no chão do quarto, com os olhos fixos na TV. Pergunto o que tanto lhe prende a atenção e ele me responde que é um “desenho”, mas que nem sabe o nome. O pai, que acompanha o filho durante a entrevista, diz que ele e o amigo Flávio gostavam de andar de bicicleta o tempo todo. Nesse momento, Cristiam entristece. Pergunto sobre sua bicicleta. “Perdi.” Cristiam não brinca com Flávio. Ele fica com outras crianças desabrigadas que estão no mesmo hotel. A maioria são amigos do distrito de Paracatu de Baixo que ele fez depois da tragédia, não as amizades de Bento.

A conversa continua e percebo que a atenção do garoto já não está na TV. Como está no colégio? “Estou gostando”, responde timidamente. “Lá na nossa escola tinha Lego e nessa não tem. As mesas de lá eram de madeira e aqui tudo é de plástico”, compara. Ele fala que a merenda servida na escola de Bento era mais “gostosa”. Por quê? Ele não sabe explicar. O garoto sabe que as cozinheiras vieram para a nova escola e que ajudam a preparar a merenda.

As lembranças de Bento ainda estão presentes na memória do garoto. Ele recorda de um desenho que fez e gostava muito, mas ficou colado nas paredes da escola, enterrado “na lama”. Como era o desenho? “Era uma moto de cor azul”. Desenha para mim? “Não. Faço feio”. Esboço alguns rabiscos no caderno que lembram uma motocicleta. Parece uma moto? “Parece. Bonita! Achei bonita”. Poucos momentos depois ele resolve desenhar uma nova moto, mas para antes de terminar. “Eu não sei fazer isso não”, diz decepcionado. A professora é a mesma? Balança a cabeça em tom afirmativo. E os coleguinhas? Cristiam fala outra coisa. “Tem um que morreu… Na lama. Ele chama Thiago.”

No mesmo hotel em que Cristiam está hospedado conheço Silvany, também de 8 anos. Ela estudava na Escola Municipal de Bento Rodrigues, na mesma turma de Cristiam e Thiago Damasceno, uma das vítimas da tragédia. Outra vítima, Emanuele Vitória Fernades, 5, frequentava a mesma escola. Silvany diz que na nova escola brinca com todos os coleguinhas, “menos um”. “Ele não se salvou. Algumas pessoas dizem que encontraram ele morto, outros dizem que não.”

A saudade da antiga escola e de Bento Rodrigues está muito presente nas falas de Silvany. “Tinha a quadra, tinha um parquinho para os meninos menores.” Ela conta que gostava muito de brincar na rua e de pular corda. “Brincava também no barro, sujava a roupa toda, e minha mãe brigava”, lembra. Hoje, Silvany e Cristiam só têm o espaço do hotel – que não é tão grande como Bento. Eles já não soltam pipa, nem brincam de amarelinha, nem andam de bicicleta. Tudo que tinham foi tomado pela lama. Agora, além da televisão, Cristiam tem carrinhos e Silvany tem bonecas, que receberam de doações. A nova escola, ainda que no momento seja um local estranho para ambos, parece ser mais próximo do que eles vivenciavam na de Bento, já que é nela que reencontram amigos, professores e constroem novas lembranças.

Depois do encontro com as duas crianças, converso com a secretária da escola de Bento, Miriam Gomes, que foi transferida para a Escola Municipal Dom Luciano, no Bairro Alto Rosário. Como era a escola? “Era a escola perfeita. Onze horas o cheiro do almoço ia lá na secretaria”, lembra, sorrindo. E na hora do recreio? “As merendeiras eram locais. Serviam cada menino e perguntavam: O que você quer? Uns diziam: Ah, eu quero só arroz, quero só verdura. Já outros: Ah, quero só angu com couve. Até esse cuidado, esse carinho, tinha como ter”. A secretária, porém, tem tido problemas para se adaptar depois da tragédia. “Tô com dificuldade de estabelecer rotina. Eu saía 6h, chegava 17h40 e dava conta de tudo. Hoje eu saio 7h30, chego 17h20, e não dou conta de nada.”

Para a pedagoga da escola de Bento, Alcione Araújo, além dos funcionários, os alunos estão com dificuldade para se adaptar. “Eles pedem a rotina, mas não depende só do professor, e vai levar tempo para estabelecerem. Acho que em fevereiro, quando começar o ano letivo e as coisas se assentarem um pouco, melhora. Está tudo bagunçado na cabeça deles, mas estão fazendo tratamento com especialista em traumas”, completa.

E a escola de Bento?

Capa do jornal produzido pelos alunos de Bento Rodrigues sobre a questão hídrica. Clique para ampliar.
Capa do jornal produzido pelos alunos de Bento Rodrigues sobre a questão hídrica. Clique para ver a edição completa.

Após o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, da Samarco, o prédio da escola foi totalmente destruído pela lama. De acordo com a secretária Miriam Guimarães, a empresa não ligou avisando do rompimento. Eles souberam que a lama estava chegando às 16h03, pelo marido da diretora. Para conseguir se salvar, os 40 alunos e 10 funcionários que estavam no prédio correram em direção à Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que fica na parte mais alta do distrito. Só foram resgatados no dia seguinte.

Dez dias depois, a Prefeitura de Mariana encaminhou 178 alunos, 102 de Bento Rodrigues e 76 de Paracatu de Baixo, que cursam entre a pré-escola e o 9° ano do Ensino Fundamental, à Escola Municipal Dom Luciano, para retomarem os estudos. Também foram transferidos para a nova escola os 43 profissionais que atuavam nos distritos atingidos. Os alunos do ensino médio permanecem nas escolas em que estudavam em Santa Rita Durão e Águas Claras.

De acordo com o secretário interino de educação de Mariana, Israel Quirino, os alunos que estão na Dom Luciano permanecerão na instituição, pelo menos, até o início do ano letivo em fevereiro. Quirino teme que esses estudantes não voltem, todos, para a mesma escola em 2016. “Trabalhamos a hipótese de que a escola do Bento seja esvaziada por causa da dispersão das famílias”, diz. “Lá todos moravam numa vila, e aqui estão espalhados pela cidade”, completa.

Enquanto a Samarco não reconstruir a escola, há possibilidade de esses estudantes serem transferidos para um espaço menor, por causa dessa possível dispersão, avalia Quirino. Se isso ocorrer, ele afirma que “a responsabilidade financeira de achar esse espaço, de adequá-lo, é da Samarco”.

O secretário de educação afirma que o valor médio mensal investido pela Prefeitura nos estudantes de Bento é de R$ 700,00 por aluno. Levando em conta o número de alunos da unidade, eram investidos em torno de R$ 80 mil por mês na escola do distrito. Depois da tragédia, a mineradora ofereceu kits escolares e transporte para os alunos e funcionários. Além disso, a Samarco contratou uma empresa da área de psicologia para fazer acompanhamento.

O que se perdeu na lama
Infográfico: Lara Massa
Infográfico: Lara Massa / Clique para ampliar

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