Da garrafa ao voo poético

PEDRO MENEGHETI
FOTO: PRISCILA FERREIRA

 

É madrugada em Ouro Preto quando a boca beija em goles a garrafa de cerveja e a mão deixa a long neck no balcão do bar Barroco. Entre as pernas da Curva dos Ventos, nasce o horizonte claro com as notícias de ontem estampadas nos jornais, correndo de mão em mão até serem esquecidos nas mesas da Padaria da Estação.

O sino da Igreja de Nossa Senhora das Mercês marca nove da manhã quando o poeta gira a maçaneta para flutuar nas pedras do caminho. Estampa nos lábios o trecho de um poema silencioso: “é preciso transver o mundo”.

Para Anderson Valfré, 22 primaveras, a linha da vida se divide em antes e depois de Manoel de Barros. Antes, levava a poesia a sério, feito gente grande, e pensava muito bem o que escrever. Em 2014, quando chegou a Ouro Preto, foi encontrado pelo idioleto manoelês, a língua dos bocós e dos idiotas  intitulada assim pelo próprio Manoel, e descobriu o prazer de brincar com as palavras, inventar um mundo pequeno e ínfimo. Depois de Manoel, Anderson descobriu que o “inútil só presta para a poesia”. Quis inventar inutensílios.

As notícias passadas e garrafas ocas ocupam os cantos de uma das cidades mais antigas e boêmias do país. Para transver as coisas comuns com a sua virtude Anderson inventou garrafas poéticas,  amarradas com fio de nylon em postes, árvores e cabos do povoado. De garrafas e jornais fez jorrar uma invenção que se torna suporte útil às palavras que saem pela simples necessidade de sair. Dão vida própria a todo verso.

Quando comemorou dois verões morando em Ouro Preto, Anderson Poeta Bicho Bobo, como se denominou, encontrou-se comigo para uma conversa sobre tudo aquilo que inventa. Com o corpo irradiando em movimentos, os braços e olhos diziam o quanto queria inovar. Apontou-me na mesa uma garrafa cuidadosamente revestida de jornal e estampada com um de seus poemas.

“Querer falar coisas sem teoria, verbalizar sentidos sem razões descrever sobre um mundo presente e lúdico. Deixo essas responsabilidades para a poesia….”

A garrafa poética, feita na noite anterior, dizia diretamente para mim . Sugeria embriaguêz lúdica, pedia que fosse um pouco bocó. Servi-me de poesia enquanto observava o corpo de Anderson praticamente bailando no  quarto para pegar os nove blocos de poesias que coleciona desde 2013 , a caixa laranjanda onde guarda jornais ou a pasta com registros de todas as cidades que já passou com a intervenção. No caixote, palavras azuis chamam atenção dos olhos.

AMOR LUGAR AMOR

Em Ouro Preto, Anderson já é conhecido como o “o moço das garrafas”. A obra e o autor se confundem sempre que podem. Mas o criador insiste em afirmar que as garrafas têm vida própria. Ele não precisa mais cuidar da poesia. Respeita o desejo das coisas, e a garrafa poética quer voar. Precisa deixá-la livre.  Conta ainda que toda vez que pendura uma garrafa, sente que parte de si está ali, engarrafada em poesia. E que precisa sempre de lembrar “eu já não sou mais a garrafa. Como dizia Leminski: ‘ameixa. ame-a ou deixe-a”. Outra pessoa também tem que amar esse inútil invenção lírica.

Levar os poemas que escreve por um caminho diferenciado e atingir o outro com um grande molotov  silencioso é  a descoberta do jovem poeta, que sonhou com a potência de modificar o estado comum do objeto. O Projeto Transver poesias é a resposta dos desejos de Valfré. As garrafas e jornais se reciclam em vida nos espaços públicos e inspiram pedestres passageiros .  Quando alguém para e contempla o que elas têm a  dizer silenciosamente, é como se uma profecia fosse cumprida. As palavras da vida de um bobo poeta refletindo o brilho dos olhos de uma pessoa curiosa e surpresa.

Conta que um senhor, com os olhos marejando ao ler uma garrafa poética, lhe revelou a potência profética da poesia. “Esse poema é a minha vida”, disse o homem barbudo declarando um pouco de si. O poeta percebeu que as garrafas têm vida própria,  os poemas estampados em cada uma delas não são para o jovem Poeta Bicho Bobo, mas para as futuras e possíveis pessoas que terão um encontro já marcado com aquele inutensílio flutuando na cidade. A poesia quer voar para olhar de perto o morador de rua, dos olhos molhados, que retrata com nobreza.

A intervenção inventiva de Valfré que começou sem grandes pretensões e pela sincera necessidade de dar liberdade à poesia viva, a cada exibição soma forças e parcerias. Atualmente, o Projeto Transvê Poesias reapresenta a ideia de performance. O corpo que interage é a garrafa lúdica e o poeta é apenas um mediador entre a palavra escrita e o poema vivo. O moço das garrafas acresceu seu projeto transformando-o em uma oficina de escrita poética para escolas públicas e bibliotecas. Percebeu a necessidade de contagiar a invencionice, de incentivar que crianças e adolescentes se alimentem de poesia.

A cada performance, os olhos curiosos e mãos ligeiras encontram as garrafas. Uma placa anuncia para levar a garrafa poética que afetar. As pessoas vagamente se aproximam e a poesia jorra, sem demora toma até os indomáveis. Contemplam e conversam com aquele objeto pelo tempo de abraço, alguns pelo tempo de um aceno. E o encanto dos afetados desperta a mesma simples e pura necessidade de levar, como sentiu o poeta em borbulhar palavras.  “Poesia é mais que palavra. Poesia é prazer”.

 Confira uma das intervenções feitas na Escola Municipal Professora Juventina Drummond:

André Valfré foi procurado pela poesia. Sua resposta foi reiventá-la(1)_p

Anderson Valfré foi procurado pela poesia. Sua resposta foi reiventá-la (2)_p

André Valfré foi procurado pela poesia. Sua resposta foi reiventá-la(3)_p

André Valfré foi procurado pela poesia. Sua resposta foi reiventá-la(4)_p André Valfré foi procurado pela poesia. Sua resposta foi reiventá-la(5)_p

 

One thought on “Da garrafa ao voo poético

  1. Só tenho a agradecer por essa bela matéria.
    Fez o projeto crescer muito a partir desse material fotográfico e descritivo.
    Salve Lampião que engrandece os olhos que o encontra.

    Abraços e continuemos em função de encantar.

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